Se você é minimamente interessado em cultura pop, muito provavelmente já deve ter ouvido falar, ou até mesmo lido que em “The Batman” de Matt Reeves, somos apresentados a uma visão do herói jamais antes explorada nos cinemas.
Isso é verdade, aqui o diretor é muito perspicaz ao fazer nosso protoganista “vestir a carapuça”.
Que carapuça seria essa?
Não, não é aquela preta que vem acompanhada de chifres e uma capa de morcego. Estou falando daquela que consegue ser ainda mais superficial e que todo protointeligentão de internet decide evidenciar:

Principalmente quando uma pessoa que tem o viés mais progressista diz que o Batman é seu super-heroi preferido (sim, é um comentário autobiográfico caso não tenham percebido.. kkk’). E sim a “carapuça” a qual me refiro aqui é a de pobre menino rico, reacionário e que flerta com o neofacismo. De fato, chamar uma figura dessas de heroi é tão contraditório quanto este ter um rapaz preto, periférico de um país subdesenvolvido da américa do sul dentre os seus maiores fãs. Mas o roteiro deste de The Batman meus amigos, explica isso pra todos que assistem e faz isso de forma que eu na minha insignificância não faria melhor.
⚠️ Abaixo começa a zona de Spoilers ⚠️
O Batman Pelo Batman
De início o The Batman oferece uma imersão na psiquê e na auto-imagem do Batman (interpretado por Robert Pattinson) que não lembro de ter visto nos cinemas até então. O recurso que é usado para isso é uma narração em “voiceover” que o prórprio Batman faz de seu diário.
Isso mesmo, um diário a lá Rorsarch no início de Watchmen e são bem parecidos em seu teor inclusive, e essa aqui foi a parte do filme onde fiquei um pouco mais orgulhoso de mim mesmo, porque diferente da empolgação efusiva e admiração que surgiu pelo personagem, quando li Watchmen pela primeira vez na adolescência, desta vez bateu uma certa vergonha alheia, não porque a qualidader do texto do filme fosse inferior a qualidade do texto da HQ, acho até que estão a altura. Mas ainda assim essa narração me soou mais como um adolescente reacionário querendo soar Edgy* no twiter.
Essa sequência da narração é seguida por uma cena onde se observa uma gangue de jovens maquiados como palhaços, prestes a fazer uma vítima no metrô, dentre eles um menino preto, o mais inseguro de todos, com apenas a metade da cara pintada.
O “legal” desta cena é a junção de alguns planos panorâmicos de Gotham apresentados anteriormente, é possível entender que a cidade, apesar de grande, é um lixo. E as consequências de uma cidade, ruim, degradada, onde se existe uma crise economica muito grande são pessoas que vão recorrer ao crime e então…
Chega o Batman e desce o cassete na gangue toda com igual violência e manda a famigerada frase que já tinha sido divulgada antes no trailer “SOU VINGANÇA!” e até mesmo a vítima em cena entendeu, não, isso não é um heroi para se admirar e essa não é necessariamente uma atitude que se dê para aplaudir.
Pronto!
Já dá pra dizer de início que não gostei do Batman… e do Bruce Wayne, bom dá para entender bem este Bruce Wayne observando a interação dele com o Alfred (Andy Serkis) qualquer avanço mais afetivo que Alfred tenta fazer, o menino Bruce faz questão de lembra-lo de que ele é um funcionário, que eles não tem laços familiares, ou como ele mesmo diz: “você não é meu pai Alfred”, se lembram do adolescente reacionário tentando ser Edgy? Então uma excelente forma de descrever este Bruce Wayne, pelo menos de início.
Um Aceno a Representatividade:
The Batman faz um esforço para corrigir a imagem de uma Gotham um tanto quanto embranquecida, criada por meio de inúmeras, HQ’s, animações e filmes ao decorrer de décadas. Através de vejam só, bons personagens! Uma delas é a candidata a prefeita mulher, preta, jovem e honesta, um frescor no meio do mar de corrupção quase que Institucionalizada na cidade interpretada por Jayme Lawson. Não posso deixar de comentar, embora evidentemente a inspiração tenha sido outra, não tem como não lembrar de Marielle Franco.

Temos também o aqui ainda Tenente Gordon, interpretado por Jefrey Wright que como de praxe está muito bem no papel e esse cast evidencia, que o comissário Gordon não tem obrigatoriedade nenhuma em ser um cara branco de bigode ruivo. E não, isso não descaracteriza o personagem. O Gordon deixar de ser um policial honesto descaracterizaria.
Finalmente chegamos a Mulher-Gato interpretada por Zoe Kravitz a interpretação dela aqui dispensa comentários. Apenas vá e veja! E falando em representatividade grande parte dela se concentra na personagem de Selina Kyle que aqui é vítima de uma série de coisas, todas elas provenientes da corrupção sobre a qual o filme fala causada por conluios dos diversos homens brancos ricos no poder, e porquê vítima por fazer parte de grupos que geralmente são os primeiros a sofrer como sintoma da corrupção é uma mulher, negra e aparentemente bissexual.
O roteiro não deixa o fato da bissexualidade explicita mas fica subentendido por meio da relação dela com a colega de quarto (Anika) além de que em entrevista recente a própria Zoe afirmou que a mulher-gato dela é bi sim. É por isso que a personagem sofre com trabalho sexual, sexismo e apesar de não falar especificamente sobre racismo mas ela cita textualmente que quem está no poder é uma cambada de gente que se aproveita do seu próprio privilégio branco. Outros fatos legais dela não ter sido escalada por ser preta aleatoriamente, pois faz menção direta a séria da década de 60 onde a personagem ser também interpretada por uma mulher preta.

Apesar de eu achar horrível e de mal gosto o filme que vou mencionar, ele também pode ser apontado como um dos motivos deste casting, sim tô falando do ínfame “Mulher-Gato” da Halle Berry.

Isso porquê o filme, apesar das controversias fez muito sucesso entre a população feminina preta nos EUA.
O Bat-machismo
A relação entre o Batman entre e a Mulher-Gato em The Batman, consiste nele sendo um homem tóxico, parte do esforço do roteiro pra tornálo ainda não é o exemplo. Então em vários momentos ele puxa ela pelo braço, pressupõe que ela tem um relacionamento que eles não tem. Mas isso serve também para pavimentar o caminho do próprio Batman para enxergar e se reposicionar perante o seu lugar de privilégio.

Desvendando o Charada
Gostei bastante do personagem Charada, grande parte porque todo o fio narrativo dele, faz com que o filme preste homenagem a todos aqueles filmes de investigação de Serial-Killers do David Fincher que eu tanto gosto, a performance do Paul Dano é maravilhosa, mas o que me brilha os olhos mesmo é a relação que o filme faz através do Charada com nosso mundo de hoje, com os problemas atuais da nossa sociopolítica mundial.
Hoje temos uma política que é muito discutida e muito decidida do ponto de vista de pessoas de classe média baixa, ou até mesmo pobres que se vêem em uma situação de insatisfação com a sociedade como um todo, que se fecham em grupos e vão criando ciclos de muita raiva represada, só que essa raiva engarrafada é utilizada por pessoas no poder que direcionam essa raiva para os lugares errados, ou seja, ao invés de direcionar essa raiva contra o poder (a quem está acima), muitos desses grupos: como turma das teorias da conspiração; Channers; Qanon e os Incels que não poderiam faltar.

Direcionam sua raiva para mulheres, trans, gays, pretos, cotas e por aí vai. Só que não tem o bom senso para enxergar que todos estas minorias citadas são tão vítimas quanto eles, eu sei que essas insatisfações não vem do nada, essas insatisfações vem de problemas causados pela nossa situação sócio-econômica, mas o grande problema está em não direcionar esta raiva para os reais culpados.
Quando digo que sei que essas insatisfações não vem do nada, porque eu mesmo sou uma pessoa que fica com muita raiva das desvantagens que já teve na vida, no passado já me peguei por vezes pensando “Nunca vou ter a minha chance?”, “Não vou conseguir fazer as coisas darem certo?”.
A quantidade de vezes que já vi de pessoas que não eram tão boas quanto eu em determinada tarefa, mas já cresceu com dinheiro ou “era filho de alguém” ou “conhecia pessoas”, eu compartilho dessa raiva. Mas como já disse e repito agora, essa raiva tem que ser canalizada para o lugar correto. Quando não é feita ela é responsável por grande parte da insatisfação social que nos acomete nos dias atuais; esse pessoal com raiva de tudo (direcionando pro lugar errado), gente pobre e trabalhadora, manipulada para ter raiva da pessoa errada pode ser sintetizada na figura do Charada:

É a história de um cara se vingando da sociedade por ela ter relegado todo o apoio que a mesma tinha condições de oferecer a ele. Em determinado ponto do filme é mostrado que ele tinha um grupo como um “Fórum de Internet” e era como se ele estivesse formando uma milícia e novamente isso me remete ao QAnon, essa conta anônima da vida real larga charadinhas o tempo todo e isso tem tudo a ver com a gamificação da política, gamificação é a idéia de expandir pra realidade a noção de jogo, quando QAnon dissemina essas pequenas charadas e cabe ao militante juntar as peças deste “quebra-cabeças” e quando ele faz isso, o militante se sente parte de um jogo, no qual a política, o “establishment” ou a “grande mídia” o enganam e ele vai à caminho da verdade através destas charadas.
O personagem Charada, opera exatamente desta forma, além das charadas e vestígios que o próprio deixa para o Batman, ele faz o mesmo para seus seguidores no “Fórum de Internet” que mencionei e com isso estes seguidores só fazem aumentar e se engajam na violência, ou seja, eles são capturados dentro dessa noção de jogo e se dispõe a agir com violência, que é basicamente o que acontece com muitos seguidores da extrema-direita nos EUA e com muitos outros tipos de fascistas inclusive aqui no Brasil.

A partir da noção de que fazem parte de um jogo que eles precisam limpar da corrupção, sempre mobilizado por uma pauta moralista. No caso de “The Batman” é a luta contra a corrupção que tira a confiança das pessoas nas instituições políticas que acaba capturando e juntando essa galera para cometer o ato de violência que depois vamos testemunhar mais adiante no final do filme.
Apresentando aquele Batman que eu aprendi amar
Falando em final, quando o Batman chega para impedir que o maior ato de violência do filme fosse consumado e assim impedir que o plano do Charada seja concretizado, em meio a esse momento ele retira a máscara de um destes minions integrantes do “Fórum do Charada” e pergunta a ele:
“Quem é você?”
…e adivinhem o que o minion responde?
“SOU VINGANÇA!”
E aí caí a “máscara do morcego”, porque o Batman se reconhece no cara e pelo jeito doeu, porque de fato esses minions fazem um reflexo de coisas que vamos notando no Batman no decorrer do filme, afinal esses caras são um bando de homens brancos reclusos que não enxergam os próprios privilégios e que foram radicalizados para uma violência extrema.
E é aí que nosso Batman começa a ter uma epifânia, que já vinha sendo construída ao longo do filme, através de olhares, mas o olhar é só um prelúdio para o que falta para o filme se concluir que é o toque! Toque, das mãos de Alfred e Bruce Wayne, toque entre a boca do Batman com a boca da Mulher-Gato.
Que culmina nesse momento de epifânia, o Batman finalmente entende seu papel, entende que precisa parar de bater e começar a ajudar, cuidado e não vingança, enquanto ele mergulha para tirar os cidadãos dos escombros, sinaliza o resgate, carrega os feridos até as ambulâncias durante o amanhecer, ele comunica uma mensagem para gente, uma mensagem que é tão humanitária quanto bonita:
“cuidem um dos outros”
Uma mensagem um tanto quanto fortuíta, afinal o filme está sendo exibido enquanto acontece uma guerra amplamente divulgada pela imprensa mundial e se torna tão emblemática por estar vindo de um cara com uma indrumentária que lembra a de um demônio medieval.
É assim que ele se revela, o Batman que aprendi a amar

Referências:
A Teoria da Janela Quebrada | Jus.com.br
Escola de Chicago: afinal, o ambiente influencia o comportamento criminoso? | jusbrasil.com.br
Batman: Louco, Herói ou Facista? | rebobinando.com.br
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Parabéns pelo texto está maravilhoso 👏.
No começo do filme tbm fiquei apreensivo achando q iam mostrar um Batman ala Zack Snyder, torturador e truculento, ainda bem q não.
Valeu demais!!! Que bom que gostou!
Seria essa a melhor crítica que já li!? Realmente este filme é o mais atual e brutal de todos, nem Cavaleiro das Trevas trouxe tanta reflexão como esse. Parabéns Alan pelo texto!
Muito obrigado, pela leitura e pelo comentário. Sempre contribui demais!!! 👏🏾👏🏾👏🏾