A verdade sobre esse filme é que tem tanta coisa pra ser dita sobre ele que mal sei por onde começar, consequência de um filme denso com diversas mensagens tão importantes quanto urgentes. Já o assisti a mais de uma semana e a sensação que tenho é de que ainda não digeri.
Enfim, acho que não há lugar melhor pra começar do que do início, né? Na verdade o filme começou discreto, meio até que “sem eu perceber”, o último trailer foi exibido e a primeira cena já emenda, com um logo minimalista que a Warner utilizava em meados da década de 70. Diferente dos demais filmes da indústria de super-heróis que se estabeleceu, que já se iniciam com seus logos gigantescos e trilhas sonoras épicas, o que se vê ao início de Coringa é um palhaço triste se maquiando em seu camarim. Isso por si só já diz a que o filme veio, não espere ver uma estória de super herói, não espere sequer um herói nessa estória. Só depois que Arthur Fleck (Joaquim Phoenix) é roubado, encurralado em um beco e em seguida espancado, por crianças, aí é que o filme tem seu título revelado sobre Arthur Fleck fantasiado de palhaço e encolhido em posição fetal.
A partir daí acompanhamos o cotidiano de Arthur Fleck: um sujeito que ao que a trama dá á entender ter mais de um problema mental, aliás não só a trama, mas principalmente a brilhante atuação de Joaquin Phoenix – o próprio ator revelou em entrevista que enquanto estava compondo o personagem queria fazê-lo de forma que um psicologo ou psiquiatra, por exemplo ao assistir o filme, fosse incapaz de apontar apenas um problema mental no personagem; outro elemento marcante, como não poderia deixar de ser, é a risada, que neste filme é proveniente de um problema psicológico que o faz rir em momentos inapropriados (um problema que realmente existe e é chamado de afeto pseudobulbar) e foi o ponto de partida do ator para a construção do personagem, e meu amigo, ele acertou em cheio e de longe! As primeiras duas ou três vezes em que ouvi a risada de Arthur no filme, lembro claramente de ter vontade de chorar enquanto o personagem ria, o que me remeteu de forma imediata aquela celebre frase que se atribuí a Kurt Cobain “Se meus olhos mostrassem a minha alma, todos, ao me verem sorrir, chorariam comigo.” Só que aqui Phoenix faz isso na prática, despe a alma de Arthur Fleck através de seus olhares e sua expressão corporal. Extremamente magro o ator expressa de forma corporal a fragilidade mental de Arthur, todo encolhido, ombros à frente, como se Arthur não se encaixasse em lugar algum, seja na sociedade de uma Gotham decadente, seja em seu próprio corpo. O trabalho de Joaquin Phoenix é tão primoroso nesse quesito que conforme a persona do Coringa vai se delineando e Arthur vai se “sentindo mais à vontade”, isso reflete na expressão corporal e na sua postura; sem dizer uma palavra ele deixa claro na fatídica cena do metrô que Arthur só se sente pleno ao cometer atos de violências extremos tal qual o assassinato.
Outro ponto importante a ser destacado aqui é a ambientação: o filme se passa em algum momento entre o final dos anos 70 e início dos anos 80, e este momento no tempo no qual o filme se localiza até refuta uma das milhares críticas moralistas que o filme tem recebido ao redor do mundo desde sua estréia: “a sociedade do mundo real jamais exaltaria um psicopata”. Nesta época existiram casos de serial killers que se tornaram famosos, e sim, até mesmo exaltados, a exemplo de Charles Manson. Já ouviram falar? A própria maquiagem do filme referencia um dos assassinos da época:
O filme expõe e NÃO faz apologia a nenhuma das situações apresentadas em seu conteúdo. O problema é que ele funciona como um espelho pra sociedade que exalta heróis circunstanciais, negligencia doentes mentais, apoia de forma irresponsável a flexibilização do porte de armas para a população, além de ser um alerta à onda crescente de terrorismo branco pelo mundo. E aqui cabe uma piada “a lá” Coringa:
– O que a sociedade atual faz quando não gosta do que é refletido no espelho?
-Diz que o que está errado é o espelho.
Diferente da maioria esmagadora dos filmes de herói que estão no mercado que funcionam como aliviadores de tensão, Coringa é daqueles filmes acumuladores de tensão, daqueles dos quais você observa à partir de um canto escuro do seu âmago, saí da sessão como se estivesse sujo e não tem problema nisso com tanto que seja adulto e saiba trabalhar os demônios internos que são inerentes a todo ser humano, é por isso que em alguns lugares do mundo o filme tem classificação indicativa +18 (no Brasil +16).
Para os que discordam talvez valha à pena parafrasear o próprio protagonista no final do filme e pedir para que encarem o filme como uma piada! Uma piada que vocês não entenderiam.
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