O “Arawn” é uma HQ francesa, lançada pela editora Soleil, que conta com o roteiro de Ronan Le Breton e desenhos de Sebastién Grenier em uma franquia de 6 livros principais e outros livros com histórias paralelas. Arawn é o deus celta dos mortos, mestre das trevas e rei das Terras Queimadas que, na saga principal, conta sua vida para o leitor. Ao longo das HQ’s uma discussão que surge é sobre a disputa de narrativas, que gostaria de apresentar.
A história começa com sua mãe, Siamh, conhecendo e se relacionando com Dag, com quem teve os filhos Math e Kern. Já na sequência, revela-se uma cena onde o casal abriga um viajante chamado Bran, que assassina Dag e abusa sexualmente de Siamh que, apesar de conseguir matar seu agressor, engravida dele dando luz a Engus e Arawn.
Durante a segunda gravidez, Siamh recebe uma profecia que diz que seus filhos irão se enfrentar “em uma luta sem misericórdia”, nenhum deles sobreviverá, mas um deles será igual a um Deus.
Ao receber a profecia, Siamh promete a si tentar evitar a luta entre seus filhos e trata-los com igualdade. Sua promessa, porém, cai por terra quando dá luz a Arawn, que nasceu sem pênis. Sabendo que homens “mutilados” ou “impotentes” jamais poderiam ser reis, ela abandona seu filho no gelo para que morra. Contudo, o bebê Arawn é criado pelo loba Sorjha como um de seus próprios filhotes e dela recebe proteção e habilidades de caça e de luta.
Já adultos, Siamh revela a profecia para seus filhos e oferece a cada um deles uma série desafios letais para que mostrem seu valor, recebam poderes e artefatos mágicos. Arawn vence seu desafio e recebe um pênis, poderes e, como artefato mágico, o caldeirão de sangue.
A HQ aos poucos vai deixando clara a preferência de Siamh por seu filho mais velho, Math. É ele quem a mãe dá preferência e, sabendo da profecia, é nele que a mãe aposta a transformação em Deus.
Ao longo das HQs, que exploram o passado de Siamh e a guerra entre seus filhos, fica cada vez mais nítido que:
1) Siamh foi criada para ser uma guerreira, assim como suas antepassadas. E, indiretamente, o abuso sexual que sofreu foi uma vingança vinda de antigos inimigos políticos de sua tribo.
2) A guerra que envolve Math, Kern, Engus e Arawn em um primeiro momento parece acontecer por diferenças pessoais entre eles. Porém, conforme a história se desenrola, fica claro que toda a matança foi arquitetada por elementos externos: os deuses e os artefatos mágicos.
3) Toda vez que Arawn busca fugir do conflito, as circunstâncias externas acabam trazendo-o novamente. Um dos momentos chave, nesse sentido, é quando no livro final, o personagem diz: “Sempre tive a impressão de viver a vida de outro homem, como se toda minha vida tivesse sido escrita antes de eu nascer”.
Ao final, a narrativa retorna ao início, onde Arawn se transforma em um Deus – o que acontece de três maneiras: com Arawn derrotando outros Deuses, ganhando ainda mais poderes e se desfazendo de seu lado humano, o que é representando quando personagem retira seu próprio coração: “Então rasguei meu coração de homem. Não quero mais ouví-lo bater e bater contra meu peito. Eu arranquei esse tumor púrpura que corroía minha carne. Eu não quero mais sofrer. Eu renunciei à minha existência humana! E agora, fora de meu corpo, essa coisa continua a bater”.
Para quem gosta de cenas de ação, mitologia, cenários e personagens épicos e várias reviravoltas de enredo, a HQ “Arawn” é um prato cheio! É impossível parar de ler pela metade sem ficar imaginando como a história irá se desenrolar.
Do lado psicológico, existem muitas questões explícitas, mas gostaria de focar em uma delas, que vou chamar de conflito de narrativas.
O Conflito de Narrativas em Arawn
Pensando de uma maneira bem simples, narrativas são textos com personagens que tem ações em um determinado tempo e espaço através de um enredo que normalmente segue uma lógica próxima da seguinte: apresentação das personagens e seus contextos, desenvolvimento das ações, clímax (momento mais emocionante da narrativa) e um desfecho, aonde os conflitos são resolvidos. E tudo isso é relatado aos olhos de um narrador, que pode ser mais próximo ou distante do foco da ação, e em uma linguagem.
Apesar de ser um conceito da literatura, a narrativa está presente em nosso dia a dia. Pensando criticamente, repare que a maior parte das suas conversas com as pessoas que você gosta seguem um modelo narrativo: contando sobre algo engraçado que aconteceu em seu dia, fazendo uma fofoca, comentando a vida de um famoso ou, principalmente, falando sobre você mesmo e a sua história.
Nesse sentido: quem escreveu sua história de vida? Vale a reflexão sobre o assunto, mas para resumir – provavelmente todas instituições das quais você faz parte (a família, a escola, instituições de saúde, instituições religiosas, instituições militares, etc).
Em Arawn o que fica nítido é um conflito de narrativas. O discurso dos deuses e da profecia afirma que só cabem duas possibilidades para Arawn – a morte ou tornar-se Deus. No discurso da mãe, Siamh, esse conflito nem está dado, pela preferência por seu filho Math. Cada um dos irmãos (Math, Kern e Engus) apresentam narrativas diferentes sobre si mesmos e sobre seu irmão Arawn. São pelo menos 5 histórias diferentes dizendo o que acontecerá com o protagonista e como ele deverá agir em sua vida.
O que fazer, então? O que fazer quando você só tem duas opções (morrer ou virar Deus), não contar com o apoio de sua família e desconfiar de seus irmãos? Quais decisões tomar?
De início, Arawn busca ignorar a profecia e ter uma boa vida. Em mais de uma situação, luta para ter um lugar onde possa aproveitar a vida e envelhecer. Porém sua família sempre acaba trazendo-o de volta para os conflitos até que o personagem, em resposta, aceita que deve lutar para ser um Deus e buscar vingança.
No contexto mitológico significa que, de maneira consciente ou consciente, Arawn cumpriu a profecia: tornou-se um Deus. No contexto familiar, Arawn também consegue dar sequência na narrativa que a mãe construiu sobre ele: apesar dela ter colocado ele no gelo ao nascer (o que podemos interpretar como um isolamento afetivo e psicológico de Arawn em relação às outras personagens) e ele ter sobrevivido, ao final do conflito ele próprio arranca seu coração (o que também podemos interpretar como um isolamento afetivo e psicológico). Ou seja, entre sofrimentos, lágrimas, sangue e dor, Arawn não conseguiu romper com a narrativa dos Deuses, nem com a narrativa que a família construiu para ele. De modo triste, o protagonista foi incapaz de criar para si mesmo uma terceira opção de existência.
Como última consideração, a linguagem da violência também não é superada. Se todos os antepassados de Arawn foram criados na violência e ele próprio tenha nascido da violência do estupro e vivido toda sua vida na violência, ao virar Deus continuou se dedicando à violência da tortura das pessoas más e à vingança. Assim, não é possível enxergar algum momento onde essa lógica violenta possa ser rompida, abrindo novas possibilidades de existência.
Conflitos de Narrativa no Rap
Discutindo sobre o quadrinho com alguns amigos, fui me recordando de algumas músicas onde o narrador apresenta conflitos de narrativa sociais.
– “Viver pouco como um rei ou muito como um Zé?” (Racionais MC’s – “Vida Loka parte II”). Sem estender muito a discussão, Mano Brown está mostrando, nesse verso, que o contexto periférico só oferece duas possibilidades: entrar para o crime e morrer cedo ou viver muito sendo alguém sem relevância. Não se apresentam outras possibilidades como, por exemplo, o estudo universitário, o crescimento pessoal e profissional. Fica mostrado, aqui, o peso da narrativa social e como é difícil para o periférico criar novas maneiras de existir.
– “Olhe, eles dão duas opções para as vadias: fazer strip ou perder” (Cardi B – “Get Up 10”). No primeiro verso da primeira faixa de seu já aclamado álbum “Invasion of Privacy”, o que Cardi mostra é também isso: a sociedade só oferece duas possibilidades para as mulheres – fazer strip ou nada. Talvez isso tudo fique ainda mais explícito considerando as vivências da MC enquanto uma mulher latina e periférica que cresceu em uma quebrada violenta dos EUA.
Por fim, deixo algumas questões. Será que nós, que estamos trabalhando, produzindo ou simplesmente consumindo Hip Hop estamos rompendo os planos que a sociedade e que nossas famílias tem de nós? Estamos conseguindo inventar nossa própria maneira de ser no mundo ou, por pressão do que nos cerca, apenas cumprindo aquilo que é esperado de nós?
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