Lanterna Verde em Crise

O que é uma crise psicológica? Para pensar um pouco sobre isso, quero explorar mais as cenas do Lanterna Verde e do Caçador de Marte na saga “Odisséia Cósmica”.

Logo após o reboot das histórias da DC em “Crise das Infinitas Terras”, a editora lançou em 1988 a mega saga “Odisséia Cósmica”. Em uma época onde as histórias em quadrinho não tinham tantos crossovers como hoje, a Odisséia traz protagonistas como Superman, Batman, o Caçador de Marte, o Lanterna Verde (John Stewart), Estelar, o demônio Etrigan, Sr Destino e, para surpresa geral, o vilão Darkseid que luta ao lado dos heróis.

O enredo, de Jim Starlin, é baseado na ameaça da Força Antivida – uma entidade viva que tem como objetivo destruir o universo. Para isso, envia 4 espectros de si mesma: cada um deve destruir um sistema solar para que o universo todo desabe em si mesmo. Para evitar que isso aconteça, o Pai Celestial e Darkseid enviam duplas que devem proteger os sistemas ameaçados: Órion e Superman, Magtron e Estelar, Batman e Forrageador e Caçador de Marte (J’onn J’onzz) e John Stewart (Lanterna Verde) – e é sobre essa segunda dupla que se falará agora.

Enviados para defender Xanshi, a dupla logo descobre que lá a força antivida assumiu controle dos eventos naturais como chuvas, raios, fogo e desmoronamentos de terra. Em várias cenas, John Stewart consegue salvar J’onzz graças a seu anel de poder. Porém, tomado por arrogância, Lanterna Verde decide prender seu aliado em uma bolha de isolamento: “Vou agir mais rápido sem ter de me preocupar com a sua vida”.

John então encontra uma bomba do juízo final – um aparelho “milhares de vezes mais poderoso que qualquer bomba de hidrogênio”. Porém a bomba e sua estrutura são amarelas – a única cor que não pode ser manipulada pelo anel de poder dos lanternas verdes. O planeta é destruído, assim como o sistema solar do qual fazia parte. Enquanto John lamenta a morte de milhares de pessoas que morreram por sua irresponsabilidade, o Caçador de Marte limita-se a dizer que nunca perdoará seu parceiro (ainda que o faça no final da saga).

Após uma série de reviravoltas no núcleo principal da HQ, a narração retorna para o Lanterna Verde. Tomado por um sentimento de culpa e sofrimento profundos, ele decide cometer suicídio confessando “Eu não posso viver com isso”.

Nessa cena o Caçador de Marte aparece e diz: “Boa ideia. É evidente que você não está capacitado para esse tipo de trabalho. Nesta profissão, é necessária uma dedicação árdua e sem retorno que exige força e caráter. Somos chamados para tomar decisões cruciais diariamente e agir com precisão. Nós também temos que ser capazes de viver com as consequências de nossos atos e aprender com nossos erros. Você (…) não tem força o bastante para encarar tais responsabilidades. É deficiente. Faça um favor ao universo e conclua sua autodestruição”. Em outras palavras, J’onzz ataca diretamente o ego do Lanterna Verde. Para surpresa do leitor, John abaixa a arma e desiste do suicídio, enquanto J’onzz sorri por ter ajudado seu amigo.

Bom, essa história toda dá muito pano pra manga para diversas discussões, mas gostaria de aprofundar uma delas: a crise.

Na psicologia do desenvolvimento as crises psicológicas são vistas como reações que as pessoas tem diante de uma experiência completamente nova que provoca mudanças na organização e na estabilidade de suas vidas. Ou seja: experiências que alteram toda a sua percepção de mundo.

Elas podem ser tanto negativas (perda de um familiar, acidentes, violências inesperadas) quanto positivas (uma promoção não esperada no emprego, começo de um namoro, gravidez) para a pessoa. Mas o ponto é: a pessoa não sabe ou ainda não tem capacidade de lidar com aquilo. Assim, sair dessa situação, é necessária uma solução criativa que pode levar, inclusive, a um profundo desenvolvimento emocional e pessoal. Só através das crises é possível crescer.

Aliás, falando sobre a dor de crescer, um importante psicólogo chamado Jean Piaget defende que o crescimento psicológico não acontece apenas na infância e na adolescência. A gente continua a crescer e a se desenvolver durante toda a vida. Por várias vezes, onde tudo parece bem, somos pegos de surpresa por situações que simplesmente não sabemos lidar. E nossas reações podem variar: negar que estamos passando por isso (Negação), sentir raiva e ter uma explosão, tentar entender tudo conscientemente para não sentirmos aquela dor (Racionalização), ficarmos tristes e sem perspectiva de mudança (Depressão), jogar a culpa em outra pessoa como se não tivéssemos nada a ver com aquilo (Projeção) e, eventualmente, aceitarmos que estamos passando por uma fase difícil (Aceitação) e lutarmos para tentar entender tudo que está acontecendo – atravessar a crise com nossa mente e coração abertos às mudanças (Enfrentamento). Pode não parecer muito bom. E não é. Mas só assim é possível crescer e se desenvolver, o que não acontece sem dor e sem crise. Se existe um consolo nisso tudo é que não somos os únicos nem os primeiros a passar por isso e sempre podemos procurar apoio em pessoas que confiamos e que, muitas vezes, já passaram por situações parecidas.

Nesse sentido, é possível dizer que, em “Odisséia Cósmica”, John Stewart, que inicialmente não consegue acreditar que sua irresponsabilidade e egoísmo destruíram milhões de vidas e todo um sistema solar (Negação), logo percebe o peso de suas ações e, com o tempo, pensa não conseguir viver com isso (Depressão). E é apenas com as falas do Caçador de Marte que ele consegue juntar forças (Aceitação).

Ainda que as falas de J’onnz tenham sido negativas, elas mostram que lidar com as consequências das próprias ações e aprender com os próprios erros é algo da natureza dos heróis (e, por que não, de todos os seres humanos) e, indiretamente, afirma que é possível enfrentar isso. Em outras palavras, se John é torturado pela culpa de ter sido responsável por tantas mortes, o que bagunçou toda sua organização e estabilidade emocionais, o que o Caçador de Marte mostra é que errar faz parte e, mais do que isso, que ele não é o único a já ter passado por isso – o que também mostra, por outro lado, que é possível lidar com aquela culpa de alguma maneira, ainda que John não pudesse visualizar isso naquele momento.

Aliás, esse é outro ponto importante: além de lidar com a culpa e com o luto de todas as mortes que provocou, toda essa experiência foi uma demonstração definitiva para John de que suas ações geram consequências. Na página 145, o Lanterna Verde diz: “Eu quis toda glória só pra mim… E milhões sucumbiram. Pensei que podia fazer tudo. Achei que era o maioral (…). E tudo por culpa da minha arrogância”.

Ainda que, no quadrinho, os diálogos sobre arrogância acabem assumindo um moralismo pedante, se pudermos substituir as reflexões sobre arrogância por outras sobre egocentrismo, talvez possam surgir debates mais interessantes: de onde vem essa necessidade de “querer toda glória só para si”? Como foi a criação de alguém que não consegue olhar para os outros, além de si? Existem maneiras de ter empatia pelos outros sendo egocêntrico? Aliás, existem quantidades saudáveis de egocentrismo, ou o correto é ser uma pessoa 100% altruísta?

Enfim, lidar com uma situação nova, com o luto, com as consequências das próprias ações e com a descoberta do lado ruim do próprio egocentrismo – tudo de uma vez. Isso leva tempo e uma quantidade enorme de energia emocional e mental. Ainda que a fala de J’onzz seja determinante, durante grande parte do quadrinho ele fica de olho em seu amigo, preocupado, porém sem interferir. Ainda que o culpe por toda a morte, ele consegue olhar para o sofrimento de seu colega, sentir empatia e respeitar seu momento.

Passada a fase de aceitação, o que vem depois? De acordo com a psicologia cognitiva será a fase de enfrentamento (ou coping, do inglês) onde cada um pode empregar uma série de diferentes recurso psicológicos e sociais como apoio de amigos e familiares, busca de informações, apoio espiritual e/ou na fé e o desenvolvimento de tolerância a frustração para que, por fim, essa fase ruim possa ser superada levando a um desenvolvimento pessoal.

Se errar é humano e se é importante se aprender a lidar com as consequências dos próprios atos e com os próprios erros, também é necessário aprendermos a contar com os outros e pode ser interessante estarmos abertos às possibilidades de mudança interna que as crise psicológicas trazem, por mais que sejam experiências difíceis e sofridas.

Sobre Arthur Venturi Vasen

Arthur Venturi Vasen é psicólogo, orientador vocacional, blogueiro de Hip Hop e apaixonado por quadrinhos
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