Post originalmente publicado no site Rap em Movimento
Antes de começar a falar sobre o show e do que foi o Kendrick Lamar, eu preciso contextualizar umas coisas. Alguns fatos serão importantes para a construção desse texto. Preciso que você guarde algumas palavras chave: rap gangsta, negros com ódio, 80, ‘racismo reverso’ e lugar de fala.
Há umas duas semanas, antes do Lollapalooza, eu tenho ouvido músicas fora do nicho de rap. Quem me conhece sabe que eu escuto muito rap, r&b e também ali na soul music. Resolvi dar uma ‘limpada’ nos ouvidos e ouvir umas brasilidades e tudo mais, isso no intuito de conhecer novos sons.
Na semana do evento eu recebi a confirmação da minha credencial como imprensa e obviamente interrompi meu jejum para ouvi meu Kendrick Lamar e o álbum Gigantes do BK com mais atenção. Foquei em ir apenas domingo. Quis guardar minha energia para esse dia. Depois de duas semanas ouvindo sons mais ‘good vibes’ eu me deparei com flows agressivos e letras fortes. Negros com raiva.
Eu sempre ouvi rap e isso não deveria me chocar, mas me chamou atenção. Eu lembrei de diversas conversas onde pessoas brancas se incomodaram com as piadas do tipo, ‘você não tem que achar nada, você é branco’ e afins… alguns chegaram a insinuar que estavam sofrendo aquele negócio lá bizarro, racismo reverso. Alguns chegam a dizer ‘Mas tem alguns negros que me olham feio quando eu vou em um ambiente só de negros. Alguns até me tratam mal por ser branco’. Nesse momento eu sempre respiro fundo e falo ‘E ta errado?’. Por anos fomos jogados nos porões da sociedade, subjugados, mortos, tivemos nossa cultura ridicularizada e ainda isso acontece. Ainda somos mortos com 111 tiros ou 80, por ‘engano’. E você não vê uma justificativa por essa raiva?
Angela Davis fala em seu livro ‘Mulheres, Raça e Classe’, sobre o mito da mulher negra raivosa. A barraqueira. Negros são colocados como briguentos, perigosos, barraqueiros e qualquer outro estereótipo nesse sentido. Voltando ao Lollapalooza, muita gente estava fazendo a piada de que no show do Kendrick só iria ter branco, isso devido ao preço dos ingressos e isso de fato aconteceu. Alguma surpresa? Não.
Enquanto esperávamos o show do Kendrick começar, uma menina branca – lembrava até aquele meme da barbie fascista -, queria passar pra frente para encontrar o namorado. Já estava muito cheio e mal conseguimos mexer os braços. Mas a menina queria passar e começou a brigar com as pessoas a sua volta, mas todo mundo ficou olhando com a cara de deboche e ainda insinuando que ela nem deveria estar ali, no estilo Tati Quebra Barraco de deboche rsrsrs. Eu pude observar pessoas que pagaram caro para estar ali. Que abriram mão de alguma coisa para poder estar ali, ver Kendrick Lamar no seu auge. Que histórico! Essa garota, claramente não tinha essa ‘vivência’. O que Kendrick representa para ela? Fiquei pensando. Julgando sim, pois sou julgada em vários lugares e ali eu estava prestes a ver um artista negro que veio de um dos bairros mais perigosos dos EUA cantar. Mais cedo eu fui prestigiar o BK e fiquei muito feliz de ver a evolução dele e seu progresso. Dentro da cena nacional isso é uma vitória. Ver negros cantando rap para um festival ‘alternativo’ é lindo.
“Eu quero ser maior que essas muralhas
Que eles construíram ao meu redor”, BK Titãs
Ver o BK no mesmo palco que depois iria cantar Kendrick Lamar, me fez lembrar que indicava o álbum dele para os meus amigos. Das resenhas e discussões e ver ele ali foi progresso. Ver toda a sua banca e a Drik e a Juyé também foi incrível! Quero mais rap no Lollapalooza organização. Por favor!
Após toda confusão com a menina branca, logo começou o culto. Sim, foi um culto. Vi meus irmãos e irmãs felizes por estar vendo O Cara em carne e osso. Ele estava ali e nem dava para acreditar direito. Muitos amigos falaram que ficaram um tempo hipnotizados. Que momento. O brilho nos olhos dos negros é a coisa mais linda. Depois de toda euforia, aquele dia tinha acabado. Acordamos na segunda, quem foi para o lolla pelo menos, com a notícia de que uma família foi executada com 80 tiros no Rio de Janeiro. Executada pelo exército da tão pedida ‘intervenção militar” (Nigga, and we hate po-po). Uma família! 80 tiros! Cadê seu racismo reverso? Cadê o seu discurso que negros são raivoso? Onde está? Você não vê famílias brancas serem executadas.
Para fazer esse texto eu juntei toda minha raiva, meu êxtase do show, junto com o meu medo de morrer a qualquer momento. Eu to cansada de explicar para gente branca qual é o seu lugar de fala. Olhem o que aconteceu. Prestem atenção nas letras do Kendrick. Escutem BK. Observe sobre o que eles estão falando? De brancos sendo assassinados por serem brancos? De ego ferido, pois um negro te olhou feio em uma festa com muitos negros? Nós temos raiva de sobra. Todo dia é um dos nossos que morre. Todo dia é uma pessoa nos humilhando. Todo dia somos barrados em estabelecimentos por estar usando capuz ou estar com a mão no bolso, ou por ódio a nós. Todo dia somos mortos pelas costas. Somos mortos por estar com uma furadeira. Ganhamos menos e morremos mais. Dia 7 de abril de 2019 será sempre lembrado por nós, negros. Todos os negros que estavam no show do Kendrick irão lembrar desse momento. O rap nacional irá lembrar do BK ali no palco. Os negros que não puderam ir vão lembrar também e aquela família, de negros, irá sempre lembrar como um dia trágico.
Era para ser apenas uma resenha sobre o melhor show da minha vida, mas não consigo ignorar a dor dos meus irmãos. Toda vitória precisa ser comemorada, como diz Akira Presidente no remix de Correria, mas ainda não conseguimos sair das margens e das estatísticas. Mas como diz o grande sábio, Kung Fu Kenny ‘But if God got us, then we gon’ be alright’!
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Texto bravo e necessário. Parabéns pela coragem