Ter esperança é o suficiente?

Recentemente li uma das sagas mais bombásticas da Marvel de 2010 para cá: o “Império Secreto”. Para quem não está familiarizado, é a saga com 11 edições onde a organização nazista H.Y.D.R.A. corrompe ninguém menos que o Capitão América e, em diversos títulos ao longo de 2017, mostra como é o mundo governado por um regime totalitário e fascista regido pelo até então líder dos Vingadores.

Entre cenas de ação, jogos de poder e super-heróis que suam a camisa ocupando o papel de resistência ao regime, uma das grandes reflexões que a saga propõe é sobre Esperança. Sobre isso, gostaria de propor a discussão: ter esperança é o suficiente?

(na HQ “Império Secreto” #09)

Na HQ, tudo começou quando a H.Y.D.R.A. resgatou o cubo cósmico e refez as lembranças de Steve Rogers como se ele fosse aliado à organização. Em um golpe muito bem elaborado, grande parte dos heróis urbanos ficaram presos em uma bolha de matéria negra em Nova York, os heróis espaciais ficaram presos para fora da Terra sem conseguirem regressar e muitos outros foram presos. Assim, sem maiores dificuldades, o nazismo se espalhou pelo governo dos EUA e do mundo.

Sem muitos spoilers, uma das cenas finais mostra o Steve Rogers da H.Y.D.R.A. lutando contra o Capitão América original, aliado à S.H.I.E.L.D. e ao governo americano. Após a cena de luta, no Império Secreto #10, o narrador conta: “A guerra havia sido vencida. A esperança tinha carregado o dia. E o que uma vez parecia ter sido impossível, era agora o momento em que vivíamos. (…) Restaurou a história que nos foi corrompida e tirada de nós, mas ela deixou as cicatrizes e os destroços. Um lembrete da nossa promessa: nunca mais. E, para alguns de nós – aqueles que defendiam o que estava por vir – ela deu um presente: uma jornada de descobertas através do ponto de recomeço. E, quando voltamos, fomos restaurados, renascidos. Nos dias que virão, haverá mais testes, mais batalhas. Mas, neste momento, éramos tudo o que perdemos. Éramos, mais uma vez, os heróis mais poderosos da Terra. Nas semanas que se seguiram, um sendo surpreendente de normalidade retornou. Um pouco do que perdemos, reconstruímos. E o que não podíamos, lamentamos. A vida continua mas, bem no fundo, nós sabíamos que nada seria o mesmo. Voltaríamos para nossas casas, nossas famílias, mas sempre carregaríamos as cicatrizes. Poderíamos restaurar e reconstruir, poderíamos lutar e honrar, mas os fantasmas ainda estavam conosco. Nos nossos ouvidos, nos lembrando do quão longe caímos, como a escuridão quase nos consumiu. Mas esse não foi o fim de nossa história. No final, superamos. Perdemos tanto, mas nunca perdemos a esperança”.

É difícil definir exatamente o que é esperança. Mas, para facilitar, podemos pensá-la como uma crença em um futuro melhor, a expectativa de que em algum momento o jogo vai virar e tudo irá prosperar.

Em “Império Secreto”, a Esperança é trabalhada de diversas maneiras.  Nos grupos de resistência, ela surge como a tentativa de cada um conseguir superar suas dificuldades imediatas: Miss Marvel, na equipe espacial, busca se manter forte e inspirar seus colegas que estão sendo massacrados por tropas chitauri; Doutor Estranho, preso dentro da bolha de matéria negra em Nova York, busca feitiços que possam ajudar a libertar a população; Viúva Negra treina um grupo de heróis adolescentes para assassinar o Capitão América. Além disso, em 10 das 11 edições aparecem imagens de dentro da mente de Steve Rogers, num ambiente de sonho, que falam sobre esperança de uma maneira metafórica, principalmente focando sobre como ela é abalada quando se enfrentam dificuldades que parecem ser grandes demais.

Hoje, na psicologia cognitiva, sabemos sobre a importância da esperança. Vemos aumentarem cada vez mais os diagnósticos de depressão, muitos em decorrência de crenças negativas sobre o futuro (já pude escrever sobre o assunto em outra ocasião). Sendo assim, é sempre importante que possamos refletir sobre o tema e o “Império Secreto” é um excelente material para isso.

Mas, para esse texto, gostaria de trazer outra reflexão: a esperança é necessária e precisa ser incentivada dentro de cada um de nós. Mas ela é suficiente?

O belo final de Império Secreto me trouxe um sentimento ambíguo. Apesar de épica, a resolução do conflito da narrativa foi atribuída à esperança. Contudo, com exceção do último, todos os quadrinhos anteriores mostraram cenas de articulação política, tramas de espionagem, luta, mortes, chacinas, projetos, conflitos éticos e morais. Como tudo isso poderia ser resumido a uma crença chamada Esperança?

Aliás, muitas cenas são marcantes nesse sentido. Já no Império Secreto #01, após o epílogo, um personagem chamado Rayshaun Lucas aparece no esconderijo da resistência dizendo que trouxe uma mensagem do Soldado Invernal (morto na HQ anterior) sobre como derrotar o Capitão América. Nessa fase, o Tony Stark/Homem de Ferro tinha se afundado na bebida e, inapto para trabalhar, deixou o cargo para uma Inteligência Artificial (I.A.) de si mesmo.

Na página 31 dessa HQ, a IA de Tony Stark conversa com Rayshaun sobre essa possível nova chance de derrotar Steve Rogers: “Ah, uma chance, certo… Eu me lembro delas! Como quando havia uma chance de que ele fosse um clone, então atacamos uma cerimônia de inovações para expô-lo. Houve 99 mortes naquele dia. Ele não era um clone (…). Ou havia uma chance de que ele tivesse sofrendo controle mental, então invadimos o instituto do Doutor Faustus para tentar libertá-lo. 116 vítimas. Erramos nessa também.

esperança
(em “Império Secreto” #01)

Juntando essas experiências anteriores de tentativa de resolução de conflito e o final de fato da saga, o que chama atenção não é somente a esperança, mas sim uma ação conjunta, coordenada e planejada. Não foi apenas uma crença num futuro melhor que acabou com o regime nazista liderado pelo Capitão América, mas sim um planejamento estratégico. Por isso, meu sentimento ambíguo chegando ao fim da história no quadrinho #10.

Pensando e pesquisando sobre isso, encontrei um vídeo do filósofo Mario Sérgio Cortella que, em entrevista a Otávio Mesquita para o programa Claquete (Rede Bandeirantes) falou sobre Esperança diferenciando o que é Esperançar do que é Esperar (assista AQUI).

Essa diferenciação é importante! Em primeiro lugar, ele coloca a esperança não como um pensamento ou sentimento, mas transforma isso em verbo, em ação, em movimento, em gesto criativo. E assim, esperar seria uma ação passiva onde o sujeito que espera com esperança não age em relação a isso: apenas fica parado, desejando que em algum momento as coisas melhorem.  Para ele, esperançar teria um sentido completamente diferente: seria o ato de acreditar em um futuro melhor e agir para que esse futuro possa acontecer.

Pode parecer apenas um jogo de palavras, ou uma problematização chique. Mas, na prática, não faltam exemplos. No rap, quantos artistas iniciantes não se deixam levar pelo sonho de ser MC ou DJ, investem toda sua criatividade em sua arte, apostam tempo e dinheiro na carreira mas encontram dificuldades por não se proporem a fazer um planejamento mais detalhado? Ou mesmo problemas mais cotidianos onde nos apegamos a esperanças de resoluções de nossos problemas mas, talvez por já termos enfrentado tanto coisa, acreditamos que as soluções cairão magicamente sobre nós.

Assim, voltando ao Império Secreto, o ato de esperançar da resistência aconteceu com base na realidade. Cada grupo de heróis verificou quais recursos tinha disponíveis, quais alianças poderiam ser formadas, os objetivos foram divididos em curto-médio-longo prazo e, com tudo desenhado, começou o trabalho pesado. Nesse caso, a resolução do conflito não foi mágica, mas sim resultado de planeamentos estratégicos e ações específicas, mensuráveis, alcançáveis, realistas e com prazos específicos. Esperançar.

Sobre Arthur Venturi Vasen

Arthur Venturi Vasen é psicólogo, orientador vocacional, blogueiro de Hip Hop e apaixonado por quadrinhos
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