Certa vez, em uma aula na faculdade, ouvi uma frase que era mais ou menos assim: “às vezes é preciso se afastar da realidade para compreendê-la melhor”. Muitas vezes, ao olharmos para algo concreto que acontece conosco, somos invadidos por sentimentos fortes (amor, raiva, ódio, alegria ou tristeza) que nos impedem de olhar racionalmente para as coisas.
E, no Brasil, em 2019, o que não faltam são situações concretas que nos despertam sentimentos fortes – pelo menos nos campos político e social. Parece que Bolsonaro e seus ministros não se cansam de dizer e fazer absurdos que julgávamos tabu e dia após dia somos surpreendidos por um novo esquartejamento dos direitos humanos.
Por uma série de motivos, acabei me lembrando de uma passagem do arco “Batman: Morte da Família”, que acontece já na renovação da DC em 2011 com os “Novos 52”. Para quem não está familiarizado, esse é o arco em que o Coringa, sumido a um ano, volta para Gothan destinado a cumprir apenas uma missão: recuperar o velho Batman. Conforme conta em diversas vezes, acredita que sua família (Alfred, Dick Grayson/Asa Noturna, Jason Todd/Capuz Vermelho, Tim Drake/Robin Vermelho, Damian Wayne/Robin e Barbara Gordon/Batgirl) mudou o herói, que ficou fora de forma e menos arriscado por agora ter outras preocupações além de combater o crime.
Assim, sem muitos spoilers, todo o enredo dos 23 quadrinhos (divididos entre 8 títulos do batverso) é direcionado para uma maneira aterrorizante de Coringa tentar se livrar da família de Batman, apenas com o propósito de ter seu verdadeiro antagonista de volta.
Dentro desse arco, uma pequena história sempre me chamou atenção. Ela acontece nos títulos “Detective Comics” #16 e #17 (os títulos 14 e 15 dentro do arco). Neles, o Batman precisa enfrentar A Liga dos Sorrisos, um trio de criminosos que segue seu chefe – o Mestre da Alegria. A Liga dos Sorrisos é um entre muitos grupos que surgem em Gothan quando o Coringa voltou à ativa. São criminosos e cidadãos comuns que, inspirados nos ideais e na personalidade do vilão louco, decidem agir: seja como uma maneira de homenageá-lo ou de simplesmente “colocarem sua verdadeira natureza para fora”. Por enquanto vou chamar isso de “Efeito Coringa”.
A introdução do “Detective Comics #16” diz: “Tem alguma coisa no ar em Gothan essa noite. O medo paira sobre a cidade como uma névoa densa. Porque Coringa está à solta. Algumas pessoas estão tirando proveito da situação e espalhando mais medo. (…) Lembretes que o Coringa está lá fora estão em toda parte (…). Qualquer um em seu juízo perfeito só quer uma coisa: sair das ruas e ficar em segurança. Porque Coringa tem uma tendência de atrair qualquer um que não esteja em seu juízo perfeito. Não só os obsessivos, os niilistas fanáticos procurando por um herói. Mas também os cidadãos comuns: aqueles que finalmente tem uma desculpa para ceder a seus desejos mais sombrios, que não precisam de nada além de um pouco de inspiração para lhes dar aquele empurrãozinho”.
Quem forma a Liga dos Sorrisos? Phillip Miles, destista; Annie McCloud, padeira, David Hill, animador de festas. O quadrinho, infelizmente, atribui doenças mentais a cada um deles. Mas o ponto é: são cidadãos comuns, com problemas, que encontram em Coringa um “pouco de inspiração” e um “empurrãozinho” para matar. Perfeitamente a definição do tal “Efeito Coringa”.
Aliás, uma história interessante dentro dessa é a de Rodney Spunman, ou Rodney Tocha. “Parece que ele era um garoto decente, no passado. Boas notas. Boas perspectivas. Mas então ele ateou fogo em toda sua família e no resto de seu prédio em seu primeiro ano no Ensino Médio”. Ele segue, desde então, uma trajetória onde comete pequenos crimes. No início do quadrinho, Rodney ajuda a Liga dos Sorrisos a organizar um assassinato. Ao final do quadrinho, descobre-se que ele se arrependeu e deixou os reféns escaparem, explicando: “Eu só queria fazer parte, mas não daquilo. Eu não queria ser um deles. Ou eternamente lembrado por isso. Eu não queria ser como o Coringa” e, na próxima página, descobrimos que como retaliação, Rodney cortou seu próprio rosto, justamente na bochecha e na boca (onde o sorriso acontece). Ou seja, é um personagem que foi inspirado por Coringa mas que conseguiu perceber que estava fora de si antes de matar um grupo de inocentes.
Você já parou para reparar como o “Efeito Coringa”, dos quadrinhos, é próximo do “Efeito Bolsonaro”?
“Efeito Bolsonaro” é um termo mais usado por economistas liberais para mostrar como algumas decisões já tomadas pelo presidente, e sua própria posse, resultaram em pequenos crescimentos em um punhadinho de setores econômicos. Ainda assim, no dia a dia, sabemos que “Efeito Bolsonaro” vai muito além disso.
Desde quando o atual presidente ganhou em primeiro turno nas eleições presidenciais, os discursos de ódio, as agressões e até mesmo homicídios aumentaram – principalmente quando estamos falando sobre mulheres no geral, pessoas negras e LGBT’s. Em alguns casos, a ligação com Bolsonaro é direta (como o assassinato de Moa do Kantendê). Em outros, é possível que a própria família do político esteja envolvida – como estamos acompanhando, muitas evidências do assassinato de Marielle Franco apontam que houve alguma participação da família do presidente. Mas, ainda, é possível ver que houve, no geral, um aumento na violência.
Em uma recente matéria da Carta Capital, podemos ver que em apenas um ano, o Brasil se tornou ainda menos seguro para LGBT’s: “O Brasil passou do 55º lugar em 2018 para o 68º em 2019 no ranking do site Spartacus dos países mais acolhedores para a comunidade LGBT. Uma queda de 13 posições em relação ao ano passado e, na comparação com os últimos 10 anos, o tombo é ainda maior: 49 posições. Em 2010, os brasileiros chegaram a ocupar o 19° lugar”.
O mesmo aumento aparece quando falamos sobre feminicídios. Em matéria do Estado de Minas, vemos que “os últimos anos têm sido marcados pelo aumento no número de casos de feminicídios que chegam ao Poder Judiciário, informou o Conselho Nacional de Justiça. (…) Em 2018, o aumento foi de 34% em relação a 2016, passando de 3.339 casos para 4.461”.
Já em 2019 pudemos acompanhar também casos terríveis como o de Pedro Henrique, assassinado pelo segurança (eleitor do Bolsonaro) do supermercado Extra, parte da estatística da ONU divulgada em 2017 que mostra que a cada 23 minutos um jovem negro é assassinado no Brasil.
Vendo tudo isso, você pode até pensar “ué, então Bolsonaro inventou a violência contra as minorias sociais?”. Óbvio que não. Mas, ao mesmo tempo, ele merece parte dos créditos pelo aumento nas taxas de violência. Aliás, é exatamente esse o ponto.
O presidente pode ser criativo na maneira de dizer o que pensa, mas ali, no conteúdo, nenhuma novidade. Misoginia, racismo, homofobia, transfobia, xenofobia. O bom e velho “cidadão de bem” brasileiro, representante da sagrada família tradicional. Nada de novo sob o Sol, mas quem sabe, um “pouco de inspiração”? Um “empurrãozinho”? “Efeito Bolsonaro”.
Aliás, sob esse aspecto, o político se torna muito mais assustados do que o palhaço assassino. O que é realmente amedrontador em Coringa é, como ele próprio diz, seu desapego à humanidade. Sociopata, inconstante e tendo passado por traumas terríveis, o vilão de Batman assusta pela sua frieza e a crueldade com que realiza seus assassinatos. Sob certo aspecto, Bolsonaro é o oposto disso. Ele não é louco, ele é assustadoramente comum. Nada diferente do que a vizinha crente que dá sermão em casais gays dizendo que vão para o inferno. Ou o tio conservador que não gosta de pessoas negras. O tio da limpeza que acha que a fulana foi abusada porque estava usando uma roupa curta. Até mesmo seu primo que vive fazendo piada com travestis.
O mérito de Bolsonaro é trazer a tona o ranço conservador presente na maioria dos brasileiros. Se após tantos anos e tanta luta se tornou feio ser preconceituoso, o que o atual presidente conseguiu foi remover essa trava e permitir ao cidadão comum ter “uma desculpa para ceder a seus desejos mais sombrios”.
Sabemos que nem nisso Bolsonaro é tão criativo assim. Nas palavras de Steve Banon, ex-assessor de Trump, “Há muitas semelhanças entre Viktor Orban, primeiro-ministro da Hungria, Trump, Matteo Salvini [vice-primeiro ministro da Itália, do partido anti-imigração A Liga], na Itália, Nigel Farage [ex-líder do UKIP, pró-Brexit], no Reino Unido, e Bolsonaro. Claramente, o populismo de centro-direita, conservador e nacionalista, é uma das tendências mais importantes do século 21”.
Assim, se o Brasil está acima de todos e Deus está acima de tudo, acima de Deus está uma ideologia: o populismo de centro-direita, conservador e nacionalista (e neoliberal). Assim, se Bolsonaro traz o que há de pior nas mentes e corações dos brasileiros comuns, ele o faz se valendo de um modelo, de uma inspiração, de uma ideologia.
O que podemos fazer? Como podemos lidar com essa situação em um país onde não existe um herói morcego?
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