Do Rap anos 90 até Bacurau

“O Robocop do governo é frio, não sente pena. Só ódio e ri como a hiena”

 Carregado de simbolismos e referências claras ao movimento Cinema Novo, o filme Bacurau despertou diversas discussões e debates nos últimos meses. Há tempos um filme nacional não era tão comentando. Fui tomada por essa euforia após sair do cinema e ficar completamente hipnotizada pelo universo daquela cidade. Comecei a buscar críticas, vídeos e uma série de conteúdo que a internet nos proporciona para absorver.

Passados alguns dias, e após inúmeros rascunhos, chegou o dia primeiro de outubro. Após ouvir isso sempre vem o “Plim” da música do Racionais na cabeça e junto toda a história do massacre do Carandiru. Cheguei ao ponto congruente entre as duas histórias. Casou bastante com minha pesquisa de pós-graduação “O Cinema Novo, Rap Nacional dos anos 1990 e a Identidade Nacional, Cultural e Política Brasileira” e posso dizer que esta análise é mais um ponto dessa pesquisa.  

A música “Diário de um Detento” contém diversos trechos que podemos passar horas debatendo sobre a importância da narrativa e complexidade. Eu faço análises, críticas sobre este assunto e debato desde 2013. É um exercício pessoal de conscientização e aprofundamento político. Ouvir “Sobrevivendo no Inferno” aproxima de nós o debate sobre as questões sociais relacionadas a população carcerária tão quanto o livro “Vigiar e Punir” de Michael Foucault. Estamos há 27 anos falando sobre o massacre do Carandiru e há 22 refletindo sobre isso em cima da letra “Diário de um Detento”. 

Para iniciar esse assunto é necessário recapitular alguns números e rebeliões que tiveram um destaque na mídia nos últimos anos.  No dia 29 de julho de 2019, uma rebelião deixou 52 mortos no Centro de Recuperação Regional de Altamira, no Pará. Em maio deste ano 55 presos morreram nos presídios de Manaus. A série de massacres no norte do país começou em janeiro de 2017 no Complexo Penitenciário Anísio Jobim (Compaj), onde foi contabilizado cerca de 56 mortes. Em três anos, no norte do país, cerca de 168 detentos foram mortos sob custódia do Estado. E saindo desse pequeno recorte a conta fica muito maior.

 Segundo o Banco de Monitoramento de Prisões, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o Brasil tem pelo menos 812 mil presos no país. Em 20 anos a população carcerária aumentou em 400% segundo os dados do Ministério da Justiça.

 Há tempos que esse debate tem sido algo bem delicado e ainda mais agora em um país governado por um ex-militar. Diante dos números das eleições é notável que a maioria elegeu o atual modelo de governo, porém a minoria branca e rica é quem detém o verdadeiro poder. O Estado governa em prol delas. 

 O grupo Racionais Mc’s escancarou os relatos da população carcerária assim como muitos grupos de rap dos anos 90 começaram a fazer na época. O tema foi presente durante muitos anos na mídia. A cada semana era transmitido algum tipo de motim em penitenciária. Essa veiculação persistente gera um sentimento de constância daquele fato e de certa forma aproxima do nosso cotidiano. No instante que ele deixa de ser constante ele some do nosso imaginário, mas não significa que ele não exista. 

Sempre esteve em pauta, mas o Estado nunca usou de políticas públicas para de fato tentar amenizar o que é o sistema penitenciário hoje. Parece que para o “cidadão de bem”, exceto quando se fala de aborto, eliminar uma minoria é a única solução para os problemas da sociedade. Eliminar uma classe social é o que ‘resolve’ os problemas. Os números mostram que não! Claramente não é a solução. Estamos há 27 anos falando de Carandiru e a população carcerária só aumenta. 

Não existem soluções fáceis para problemas complexos. A crítica permanece a mesma! Acredito que muitos de nós já ouviu que haverá um momento que nós seremos minoria em relação ao número de detentos que existem no Brasil. 

Onde o Estado é ausente a população se organiza de alguma forma para poder substituir aquela lacuna. Foi nesse momento que eu lembrei de Bacurau ao realizar essa análise. 

O que Bacurau tem a ver com tudo isso? 

É justamente a história de uma cidade onde o Estado é omisso e pratica políticas genocidas de higienização e de uma tomada de poder de um povo. Observando de uma ótica micro, onde Bacurau é o grande centro, a minoria que levou a pior. 

Mas a cidade fictícia está sob um Estado e ele entrega a cidade por dinheiro e sob a ótica que aquele vilarejo minúsculo não vai fazer falta e que aquelas pessoas não são importantes. A ideia do isolamento físico reforça o conceito de uma falsa minoria. Isso foi feito desde que o primeiro navio negreiro chegou em nossa costa. As famílias eram separadas para não viverem em comunidade.

Esse conceito é bem relativo. Tomada de poder e minoria sempre andam juntos. O fato é que mudanças comportamentais e despertar político engaja a “maioria”.

Logo após o surgimento do Cinema Novo houve uma tomada de poder de uma “minoria”. O movimento teve seu início em 1960 e após 4 anos foi dado início a um período sombrio em nossa história. O surgimento do Rap anos 90 viveu as consequências da ditadura. O país estava se recuperando economicamente, mas a violência de todo esse período não cessou e foi parar nas periferias. Toques de recolher e diversas chacinas fizeram parte da vida de uma “minoria”. A música “Pânico na Zona Sul” vem falar disso. Um grupo denunciando chacinas em sua quebrada. É um pequeno recorte de uma situação de extrema violência. O país havia se livrado da ditadura, mas não 100%. 

No pós movimento Rap anos 90, o país teve uma ascensão econômica e possibilitou muito acesso para periferias e que incentivou, pessoas como eu, a estarem aqui hoje refletindo sobre esses recortes históricos. Vivemos um período de bonança, mas estamos de volta para aquele impasse. O rap tem outra cara e fala de assuntos variados. Com Bacurau o cinema veio inspirado pelo passado apontando para o futuro, pois logo no início o público é  avisado que aquilo acontece no futuro. E acredito que agora é a nossa maior preocupação. Vamos reviver a mesma história do “pós cinema novo” ou “pós rap anos 90”? 

Sobre Mari Paulino

Geminiana fã de 2PAC e Gangsta rap com os dois pés no samba. Jornalista nascida em São Paulo, com o coração em Fortaleza. Fã do Spiderman e da série Resident Evil. Piadas ruins e Chapolin Colorado sempre são pautas das minhas conversas.
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